Continuando a série sobre a memória gráfica paranaense, vejamos dois rótulos de erva-mate, impressos em litografia, das marcas “Asencio” – pertencente ao acervo do Museu Paranaense – e “Centenário” – da coleção do arquiteto e professor Key Imaguire Junior.

Mañana de Asencio, óleo de Carlos Maria Herrera (1875-1914).

Descrevendo o primeiro rótulo, da marca Asencio, identificamos como fabricante e exportador do produto a Indústrias Adalberto Araújo, da cidade paranaense de Ponta Grossa, e como importador Luisa Delfino, empresa uruguaia. Embora em letras muito pequenas, é possível encontrar no rótulo o nome da Litografia Progresso, de Curitiba, responsável pela sua impressão. Quando elaborou a ilustração que aparece no centro do rótulo, o litógrafo baseou-se na pintura intitulada Mañana de Asencio, de autoria do artista plástico uruguaio Carlos Maria Herrera (1875-1914). A pintura representa o que, na história uruguaia, se conhece como o “Grito de Asencio”. Este episódio, ocorrido às margens do arroio Asencio, em fevereiro de 1811, é considerado a primeira manifestação revolucionária de independência do Uruguai. Comandados por Pedro José Vieira (Perico El Bailarín) e Venâncio Benavides, na madrugada do dia 28, alguns revoltosos ocuparam as vilas de Mercedes e Santo Domingo de Soriano. A partir de então, o movimento ganhou força e foi, posteriormente, liderado por José Gervasio Artigas.

Na sequência, o rótulo da marca Centenário, mostra Artigas, o grande herói revolucionário uruguaio, observando uma cena de batalha ao lado de outro cavaleiro. Pode-se suspeitar ser Artigas representado na ilustração, pois, na parte de cima do rótulo, aparecem duas bandeiras, sendo, a da esquerda, a bandeira uruguaia mais conhecida internacionalmente e, a da direita, a bandeira chamada de “Bandeira de Artigas”. Curiosamente, o Uruguai é o único país que possui três bandeiras oficiais. Outro dado a considerar, e que reforça esta tese, é a marca “Centenário”, pois, em 1925 comemorou-se o centenário da independência do Uruguai. Tecnicamente, e caso raro, este rótulo se diferencia do anterior por ter sido impresso em cromolitografia, uma técnica litográfica que permite reproduzir as imagens com maior fidelidade e qualidade, o que é facilmente percebido na comparação entre os dois rótulos.

As três bandeiras uruguaias. À esquerda, a mais conhecida internacionalmente;
no centro, a Bandeira de Artigas; e, à direita, a Bandeira dos Treinta y Tres Orientales.

Imagens, imaginário e identidade

As imagens nesses dois rótulos, tinham, no passado, a função simbólica de unir todos os uruguaios – que cotidianamente serviam-se da erva-mate para o preparo do chimarrão – aos seus heróis nacionais. A frase Aqui nacio la pátria y en su honor esta mejor yerba deixa clara esta intenção, ao mesmo tempo que associa o produto ao sentimento de orgulho pela nacionalidade uruguaia. As imagens, apoiadas por esse slogan e pelos nomes atribuídos aos produtos, transferem para o ato de consumir a bebida o sentimento patriótico da nacionalidade. Participam assim, como os monumentos, os símbolos nacionais, os quadros e esculturas, entre tantos outros meios, do processo de construção identitária. Para Hall (2005, p. 50) as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

Uma nacionalidade se funda através de mitos, de rituais, de heróis, que legitimam e atribuem significado a vida dos membros da nação. A função do mito é provocar uma relação afetiva com o contexto dramático da sua narração e, assim, traduzir uma ordem e motivar as atitudes individuais para que correspondam a narração.

As imagens, desde tempos remotos, foram especialmente úteis na construção de mitos fundadores, rituais e processos simbólicos. Nos rótulos de erva-mate cumpriram de imediato uma função prática, ou seja, veicular informação sobre o produto, enquanto também exerceram uma função afirmativa de diferenciação tanto do produto como de seus consumidores. Foram meios de afirmação de uma cultura própria do sul do continente americano e, ainda hoje, permitem imaginar, pelos desenhos, pelas cores e demais detalhes, os modos de vida, os sentimentos, os ideais almejados no passado.

Bibliografia

BOGUSZEWSKI, J. H. A primeira impressão é a que fica: imagens, imaginário e cultura da alimentação no Paraná (1884-1940). Tese (Doutorado), Universidade Federal do Paraná, Departamento de História, Curitiba, 2012.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2005.